Apontamentos Sobre a Pesquisa do Nexo Causal Entre as Doenças e o Trabalho

Dr. Marco Antonio Borges das Neves – CREMESP 90.989

Especialista em medicina Preventiva e Social – Unicamp

Especialista em Medicina do Trabalho – Unicamp

Título de Especialista em Medicina do Trabalho – ANAMT/AMB 112.660

Título de Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas – ANMLPM/AMB 131.595

A discussão quanto ao nexo causal entre as doenças e o trabalho é extremamente complexa. Uma das inúmeras causas dessa confusão é a miríade de teorias existentes quanto aos critérios para sua caracterização, que é fonte de controvérsia inclusive entre grandes doutrinadores. Além disso, os critérios utilizados são diferentes para a justiça criminal (que também dispõe de filtros como o “Princípio da Tipicidade”, para limitar a extensão da cadeia causal), na Justiça Cível e no âmbito previdenciário.

E de fato, Autores como Sebastião Geraldo de Oliveira reconhecem que os princípios que norteiam a vinculação causal pela previdência social são  mais amplos que os que são utilizados na caracterização da Responsabilidade Civil, eis que admitem situações que são consideradas excludentes de causalidade, (como Fato de Terceiro, motivo de Força maior, caso fortuito e  culpa exclusiva da vítima) como caracterizadoras de Acidente de Trabalho.

Anderson Schreiber [1], aponta que se reconhece, há muito, que o nexo de causalidade natural ou lógico se diferencia do jurídico, no sentido que nem tudo que, no mundo dos fatos da razão, é considerado como causa de um evento pode assim ser considerado juridicamente. A vinculação da causalidade à responsabilização exigiria uma limitação do conceito jurídico de causa, sob pena de uma responsabilidade civil amplíssima. A leitura de Schreiber, como citação de outros autores como Tepedino, traz a luz a ideia de que, visando ampliar o acesso a indenização pelo “Dano”, sob certos aspectos, juristas e juízes poderiam estar se utilizando da miríade de teorias sobre o Nexo Causal não para orientar a análise meritória dos casos em concreto, mas para justificar a decisão que querem tomar ou a tese que procuram defender, o que seria preocupante.

Infelizmente, muitos juízes, advogados, médicos do trabalho, e até mesmo alguns profissionais que se intitulam especialistas em medicina legal e perícias médicas, não compreendem as diferenças conceituais importantes existentes entre “Doença Ocupacional” e “Doença Relacionada ao Trabalho”, em relação à caracterização das relações de causa e efeito entre os problemas de saúde e as atividades dos trabalhadores. A grosso modo, podemos dizer que as “Doenças Ocupacionais” são as doenças que apresentam uma relação causal consistente com as atividades laborais, possuindo nexo causal com o trabalho. Já as “Doenças Relacionadas ao Trabalho”, são doenças que admitem também relações causais inconsistentes, ou até mesmo apenas especulativas, com o trabalho.

Assim sendo, ao considerar que a caracterização de uma doença como sendo “Relacionada ao Trabalho”, ou ainda utilizar os critérios previdenciários para caracterizar Acidente de Trabalho (com a finalidade de concessão de benefício acidentário), para a caracterização de nexo causal na Responsabilidade Civil (dever de Indenizar), é uma distorção, uma verdadeira deturpação dos parâmetros médico-legais de estabelecimento de causalidade, em detrimento da simples suspeita ou do estabelecimento de relações fracas, espúrias ou meramente especulativas. E este é um processo que vem se construindo nas últimas décadas, através do qual o tecnicamente coerente foi sendo paulatinamente substituído por critérios intangíveis e, consequentemente, facilmente manipuláveis pelo avaliador.

Os conceitos de “Doença do Trabalho” e de “Doença Profissional”, foram criados para uma legislação previdenciária que, por opção política,  superestima e superamplia a possibilidade de estabelecimento de uma relação causal entre o acidente, doença ou lesão e a atividade laboral, mesmo que havendo apenas suspeita dessa relação ou mesmo diante de situações que classicamente são aceitas como rompedoras do Nexo Causal na Responsabilidade Civil, como Motivo de Força Maior, Caso Fortuito, Fato de Terceiro, Culpa Exclusiva da Vítima, etc…

A bem da verdade, a Organização Mundial da Saúde diferencia “Doença Ocupacional” de “Doença Relacionada ao Trabalho”, deixando claro que Doença Ocupacional é qualquer doença contraída primariamente como resultado de uma exposição a fatores de risco emergentes da atividade laboral.[2]

Portanto, uma doença ocupacional é uma moléstia, ou lesão, que tem o trabalho como um fator causal suficiente, por si só, para justificar o adoecimento (quando o trabalho por si só justifica o adoecimento ou a lesão, como ocorre, por exemplo, em uma amputação traumática de um dedo por uma prensa); ou onde o fator ocupacional é no mínimo um fator necessário para o adoecimento (como ocorre nos casos de concausalidade, ou seja, em que o trabalho é um fator necessário, juntamente com outros fatores também necessários, para o adoecimento do trabalhador). Estes conceitos, universais, remetem à teoria da necessariedade da causa (causa necessária).

Já o conceito de “doenças relacionadas ao trabalho”, é muito mais amplo do que o de doença ocupacional, eis que admite hipóteses de influência não necessariamente causais entre o trabalho e a doença, como nos casos em que o fator laboral não seria necessário para o adoecimento, mas poderia de alguma maneira (não bem estabelecida), contribuir para o adoecimento; ou ainda estar associado com a manifestação precoce de uma doença latente, que iria se manifestar em algum momento da vida do indivíduo. Nessas duas situações, não haveria comprovação da efetiva participação do fator laboral na história natural da doença, esta seria uma conjectura, uma abstração, que poderia, ou não, ser corroborada por dados epidemiológicos.

E se a questão do estabelecimento do nexo causal para doenças ou lesões em Perícia Médica já é uma questão tormentosa, a questão da concausalidade é um problema ainda mais complexo.

Anaxágoras (500 aC – 428 aC), foi o fundador da primeira escola de filosofia de Atenas. Um de seus postulados é que “todas as coisas estavam juntas” na mistura original, e que tudo está em tudo o tempo todo. Dessa forma tudo teria um pouco de cada coisa. [3],[4] Uma de suas frases mais famosas seria: “tudo está em tudo”. Se este antigo teorema for aplicado, como parece estar sendo aplicado (às vezes seletivamente), por alguns profissionais, nas perícias médicas, não haveria como negar a existência de concausalidade entre qualquer situação da vida do cidadão (incluindo o trabalho) e as doenças que este venha apresentar.

Decidir sobre a causa ocupacional de uma doença não é uma “ciência exata”, mas uma questão de julgamento com base em uma revisão crítica de todas as evidências disponíveis, o que deve incluir uma consideração do seguinte[5]:

  1. Força de associação. Quanto maior o impacto de uma exposição sobre a ocorrência ou desenvolvimento de uma doença, maior a probabilidade de uma relação causal.
    1. Consistência. Quando diferentes conclusões de pesquisas científicas apresentam resultados e conclusões semelhantes.
    1. Especificidade. A exposição a um fator de risco específico resulta num padrão claramente definido de doença ou doenças.
    1. Temporalidade ou sequência temporal. A exposição de interesse precedeu a doença por um período de tempo consistente com qualquer mecanismo biológico proposto.
    1. Gradiente biológico. Quanto maior o nível e a duração da exposição, maior a gravidade das doenças ou sua incidência.
    1. Plausibilidade biológica. Pelo que se sabe de toxicologia, química, propriedades físicas ou outros atributos do risco estudado ou perigo, faz sentido biológico sugerir que a exposição leva à doença.
    1. Coerência. Uma síntese geral de todas as evidências (por exemplo, epidemiologia humana e estudos com animais) leva à conclusão de que existe uma relação de causa e efeito num sentido amplo e em termos de bom senso geral.
    1. Estudos intervencionistas. Às vezes, um ensaio preventivo primário pode verificar se a remoção de um risco específico ou a redução de um risco específico do ambiente de trabalho ou atividade de trabalho elimina o desenvolvimento de uma doença específica ou reduz sua incidência

O Ministério da Saúde do Brasil, também indica procedimentos necessários para o estudo do Nexo Causal das Doenças Relacionadas ao Trabalho:

No mesmo prumo, o Conselho Federal de Medicina também determina parâmetros que devem ser observados Para o estabelecimento do nexo causal entre os transtornos de saúde e as atividades do trabalhador [6]:

Resolução CFM 2183/2018

Art. 2º – Para o estabelecimento do nexo causal entre os transtornos de saúde e as atividades do trabalhador, além da anamnese, do exame clínico (físico e mental), de relatórios e dos exames complementares, é dever do médico considerar:

I – a história clínica e ocupacional atual e pregressa, decisiva em qualquer diagnóstico e/ou investigação de nexo causal;

II – o estudo do local de trabalho;

III – o estudo da organização do trabalho;

IV – os dados epidemiológicos;

V – a literatura científica;

VI – a ocorrência de quadro clínico ou subclínico em trabalhadores expostos a riscos semelhantes;

VII – a identificação de riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos, estressantes e outros;

VIII – o depoimento e a experiência dos trabalhadores;

IX – os conhecimentos e as práticas de outras disciplinas e de seus profissionais, sejam ou não da área da saúde.

Parágrafo único. Ao médico assistente é vedado determinar nexo causal entre doença e trabalho sem observar o contido neste artigo e seus incisos.


[1] Schreiber, A: Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil, 5ª Ed. Editora Atlas, 2013.

[2] Word Health Organization: : Occupational and Work Related Diseases –  http://www.who.int/occupational_health/activities/occupational_work_diseases/en/

[3] http://www.acervofilosofico.com/anaxagoras

[4] Stanford Encyclopedia of Philosophy: : https://plato.stanford.edu/entries/anaxagoras/

[5] International Labour Organization :” Identification and recognition of occupational diseases: Criteria for incorporating diseases in the ILO list of occupational diseases”.  Meeting of Experts on the Revision of the List of Occupational Diseases (Recommendation No. 194) (Geneva, 27–30 October 2009)

[6] Conselho Federal de Medicina: “Resolução 2183, de 21 de junho de 2018”. Publicada no DOU de 21/09/2018.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *